‘Se não mudar, vai morrer’: não controlar fatores de risco após infarto deixa paciente à beira de novo ataque cardíaco

Infarto, angina e arritmia cardíaca: saiba como se proteger das doenças do coração Quando a psicóloga carioca Roberta Massot, 40 anos, sentiu um “soco no peito” e o braço formigando, imaginou que fosse ansiedade ou gases. Minutos depois, estava numa maca ouvindo: “A senhora está tendo um infarto.” Roberta sobreviveu, recebeu um stent e reconstruiu a rotina — alimentação, exercícios, consultas, exames. Mas, no Brasil, a história da maioria não termina assim. Um estudo nacional com 2.003 pacientes, publicado no Scientific Reports, revelou que apenas 0,3% seguem todos os pilares recomendados para evitar um segundo evento cardiovascular. Ou seja, 99,7% continuam expostos a alto risco. “Metade dos pacientes abandona a medicação em até dois anos”, explica o cardiologista Eduardo Lima, da Faculdade de Medicina da USP. “O pós-infarto é um divisor de águas, mas o medo dura pouco.” A psicóloga Roberta Massot Arquivo Pessoal O que o novo estudo mostrou: falhas em todos os pilares O registro avaliou sete pilares considerados essenciais para evitar um novo infarto em quem já teve um primeiro evento. Quando se olha para cada um desses pilares separadamente, o cenário é ruim: Colesterol LDL muito baixo (meta: < 55 mg/dL). Essa é a meta específica para quem já infartou — quanto mais baixo o LDL, menor o risco de outro evento. Só 8,6% dos pacientes atingiram esse valor. Isso significa que mais de 90% continuam com colesterol acima do ideal. Atividade física suficiente. A recomendação mínima é 150 minutos por semana (caminhada, academia, bicicleta). Apenas 12,5% cumprem essa meta. Pressão arterial controlada (<130×80 mmHg). Controlar a pressão evita ruptura de novas placas e reduz muito o risco de um novo infarto. Só 40% dos pacientes tinham a pressão dentro do alvo. Não fumar. Esse foi o melhor indicador: 84% não fumavam no momento da avaliação. Apesar disso, o tabagismo ainda aparece como um fator relevante, porque reincidência e exposição passiva continuam sendo problema. Controle adequado do diabetes (HbA1c ≤ 7%). Entre os pacientes diabéticos, apenas 15,7% estavam com a glicemia bem controlada. Diabetes mal controlado acelera formação e ruptura de placas — e é um dos principais motores de novos infartos. Uso de estatina de alta potência. A estatina é o remédio mais importante para reduzir o LDL rapidamente. Só 42% usavam as doses mais potentes, recomendadas para quem já infartou. Como interpretar esses números O estudo não está dizendo que ninguém faz nada — mas que quase ninguém consegue atingir vários objetivos ao mesmo tempo, o que é fundamental para realmente reduzir o risco. Cada pilar influencia os outros. Quando um falha, o restante dificilmente compensa. E, para piorar, o estudo mostra que somente 0,3% atingiram todos os pilares combinados — algo esperado justamente para quem já sofreu um evento tão sério quanto um infarto. E, combinando tudo, o número que mais chocou os especialistas: só cinco pessoas entre as 1.992 avaliadas atingiram todos os critérios. “É uma cadeia longa: precisa prescrever, ter acesso, aderir, tolerar, manter… e algo falha no meio”, diz Lima. O risco do segundo infarto é altíssimo Quem já infartou passa automaticamente à categoria de risco cardiovascular extremo. O motivo é simples: Grande parte dos pacientes tem outras placas silenciosas. A inflamação causada pelo primeiro infarto pode desestabilizar placas vizinhas. Até 18% sofrem um novo evento no primeiro ano, segundo estudos internacionais citados por Lima. O cirurgião cardiovascular Ricardo Katayose, da BP — A Beneficência Portuguesa de São Paulo, explica: “Se uma artéria do coração entupiu a ponto de causar um infarto, é muito provável que outras também tenham algum grau de obstrução. O paciente não pode achar que, porque colocou um stent ou fez uma ponte, o problema acabou. Esse raciocínio é totalmente equivocado.” Ele reforça um ponto crítico: “Os tratamentos — trombólise, angioplastia, cirurgia — salvam a vida naquele momento, mas não tratam os fatores que levaram ao infarto. Não corrigem colesterol alto, tabagismo, obesidade, hipertensão. Isso só vem depois, com disciplina.” ‘O infarto é um aviso de que existe uma doença instalada’ O cirurgião explica que o infarto é o desfecho final de um processo silencioso que evolui por anos: “Uma placa de gordura cresce dentro da coronária como um terçol. Quando rompe, o sangue tenta ‘consertar’ a parede, mas o coágulo formado é tão grande que entope o vaso.” Ele ressalta que, ao contrário do que muitos imaginam, o evento agudo não resolve o problema: A angioplastia reabre o fluxo. O stent estabiliza a região rompida. A cirurgia desvia o sangue. Mas nenhuma dessas intervenções elimina o risco. “É comum o paciente achar que colocou o stent e não precisa mais fazer nada. Mas se não tratar o colesterol, a pressão, o cigarro, a diabetes, a doença continua avançando.” Medo, mudança e uma segunda chance Roberta Massot e as filhas Arquivo Pessoal Se o infarto foi o choque inicial, o verdadeiro terremoto veio depois da alta. Roberta voltou para casa com um stent no peito, uma lista de remédios e uma frase que ecoava diariamente: “Se você não mudar, vai morrer.” Nas primeiras semanas, mal dormia. Sentia o coração bater e achava que algo ia dar errado de novo. Qualquer dorzinha, qualquer aperto, qualquer tontura era interpretada como ameaça. “Eu fiquei em pânico de ficar sozinha”, relembra. “E, quando ficávamos só minha filha e eu em casa, o medo era ainda maior.” A reconstrução exigiu tempo e terapia. “Tudo que acontecia me fazia acreditar que eu ia infartar de novo.” Com ajuda profissional, Roberta conseguiu transformar a rotina: colocou despertador para tomar os remédios; passou a treinar todos os dias, 1h30 na academia; refez a alimentação, trocando pizzas e hambúrgueres por legumes e frutas; aprendeu a acompanhar a própria pressão e a reconhecer sinais de alerta; retomou o sonho de aumentar a família. Um ano depois, engravidou novamente — uma gestação acompanhada de perto por cardiologistas, com risco de pré-eclâmpsia, mas que terminou bem. Hoje, faz exames a cada quatro meses e um check-up anual completo. Continua hipertensa, mas com a pressão sob controle. E guarda uma cena que simboliza tudo: ao voltar do hospital, a filha encostou o ouvido no peito dela e disse: “Ufa. Tá batendo.” “Ali eu entendi que ela tinha compreendido alguma coisa. E foi ali também que eu entendi por que eu precisava cuidar de mim.” Por que Roberta conseguiu — e a maioria não? O estudo ajuda a responder. A principal barreira não foi custo, mas julgamento clínico e adesão: muitos médicos não prescrevem terapias mais potentes, e muitos pacientes abandonam o tratamento ao se sentirem “curados”. O cardiologista Luis Henrique Wolff Gowdak, do InCor-HCFMUSP, chama esse fenômeno de “banalização do infarto”. “Hoje o paciente chega ao hospital, toma algumas medicações, passa por uma angioplastia, vai ao TI e cinco dias depois está em casa sem sentir mais nada. A percepção do risco que ele correu fica atenuada. Ele acha que está curado — e isso é a receita para abandonar o tratamento.” Para ele, o risco é claro: “O paciente precisa entender que o próximo evento pode não ter a mesma evolução benigna. Pode ser um desastre.” O estudo mostrou ainda que o problema também nasce dentro do consultório. “Mesmo com toda a literatura mostrando o impacto do controle rigoroso dos fatores de risco, nós estamos muito distantes de oferecer esse cuidado na prática. Muitas vezes o médico não reconhece a necessidade de um controle de excelência e, quando reconhece, tem dificuldade de convencer o paciente”, afirma Gowdak. Essa soma de falhas — clínica e comportamental — ajuda a explicar por que menos de 1% dos mais de 2 mil participantes tinham todos os fatores de risco controlados. “Não basta tratar mais ou menos. Não basta controlar só a pressão ou só o colesterol. É preciso tratar o paciente na integralidade, e por toda a vida”, reforça o cardiologista. Para completar, Gowdak lembra que o paciente pós-infarto frequentemente não sente mais nada, o que sabota a adesão: “Ele venceu o evento agudo e ficou assintomático. Aí recebe uma lista de remédios que ele não entende exatamente por que deve tomar — e que podem ter efeitos colaterais. Isso é a combinação perfeita para o abandono.” Katayose reforça: “O infarto aparece como um alerta maior. Ele diz: ‘Você tem uma doença instalada.’ A partir dali, tudo precisa ser reavaliado, tudo precisa ser controlado.”


















